Redes de brechós crescem com economia circular, superam milhões em vendas e querem abrir centenas de lojas
Peça Rara e Enjoei planejam abrir 300 lojas físicas nos próximos anos; ‘brechózeiras’ buscam peças exclusivas para economizar e combater o desperdício, evitando a compra de roupas novas Impulsionadas por uma mudança na mentalidade do consumidor, em que a sustentabilidade se tornou fator decisivo no momento da compra, redes de brechós vêm conquistando cada vez mais espaço no mercado da moda. Essas empresas se apoiam em curadoria especializada, feedback da clientela para garantir qualidade e sobretudo no modelo “uma loja a cada esquina”, com foco total nas vendas presenciais.
O Enjoei é a maior plataforma online de moda circular no mercado, com mais de 4 milhões de usuários que já anunciaram 84,6 milhões de produtos. No quarto trimestre de 2024, o valor total das vendas realizadas online foi de R$ 418 milhões, um aumento de 36% em relação a 2023. Um estudo interno da empresa, realizado em parceria com o Boston Consulting Group (BCG), mostra que o mercado de segunda mão tem potencial para alcançar R$ 80 bilhões.
Loja físico do Enjoei em São Paulo
Divulgação/Enjoei
Segundo a fundadora, Ana Luiza McLaren, esse dado foi fundamental para que o Enjoei expandisse sua presença no varejo presencial. No ano passado, foram inaugurados os primeiros espaços físicos (Vila Madalena, Campo Belo e Bela Vista), que superaram as expectativas nos primeiros meses de operação.
— Demos início ao nosso projeto de expansão por meio de um modelo de franquias inovador, atrativo e sustentável para quem deseja investir, democratizando o acesso à moda em todo o Brasil. A meta é abrir 300 lojas até 2027.
A 500 metros da loja do Enjoei na Frei Caneca, há outro brechó: o Peça Rara, que tem foco na venda presencial, apesar de ter mantido uma plataforma online por três anos. A empresa criou um site durante a pandemia, mas decidiu desativá-lo no fim do ano passado para priorizar a expansão das lojas físicas.
O brechó Peça Rara tem a atriz Deborah Secco como sócia
Divulgação/Peça Rara
Bruna Vasconi, sócia-fundadora do Peça Rara Brechó, diz que a empresa já conta com 30 unidades em São Paulo, muitas delas próximas umas das outras. A um quilômetro da unidade da Frei Caneca, há outra em Higienópolis, por exemplo. A meta é alcançar 300 lojas em até cinco anos.
— Fiquei preocupada quando surgiu a primeira plataforma de revenda, mas foi interessante acompanhar esse movimento online, que ajudou no nosso crescimento. O online chama atenção, mas o presencial é fundamental para tatear o produto, experimentar a peça e saber o estado dela.
Ela explica que todas as lojas seguem um padrão de disposição e decoração, mas adaptam o mix de produtos ao público local. Em média, 93% das peças recebidas são vendidas no mesmo mês. No último ano, foram 500 mil fornecedores atendidos. Cada unidade recebe cerca de 30 fornecedores por dia, cadastrando aproximadamente 500 peças diariamente.
Brechós versus fast fashion
O grande diferencial das lojas, segundo Bruna, está na variedade de itens. A maioria das unidades oferece artigos femininos, masculinos, itens de decoração, pequenos móveis e até produtos para animais de estimação. Ela observa que há um volume crescente de consumidores buscando peças de segunda mão por consciência ambiental, mas ainda há aqueles que transitam entre o brechó e as fast fashion.
— O fast fashion é concorrente do brechó. Pode ser que algumas pessoas deixem de comprar num para comprar no outro, mas o consumidor descobre que consegue comprar itens de melhor qualidade no brechó, pelo mesmo preço de uma peça nova na fast fashion.
A designer Isabela Grobério, de 25 anos, frequenta brechós há cinco anos. Seu interesse por roupas de segunda mão começou depois de assistir a vídeos online sobre os achados de quem “garimpa” nesses locais, além de conteúdos que abordam os impactos ambientais do fast fashion — modelo focado na produção massiva e no estímulo ao consumo excessivo.
Isabela evita ao máximo comprar em sites de fast fashion e só recorre a lojas de departamento ocasionalmente, quando precisa de algo específico e não tem tempo para garimpar em brechós. Ela gosta mais de brechós tradicionais, tanto pelos preços mais baixos quanto pela experiência de vasculhar pilhas de roupas até encontrar algo que chame sua atenção.
— Você pode encontrar peças que não encontraria em outros lugares e dar um novo propósito para elas, além de ser mais barato e de saber que aquele item não vai para o lixão. Muitas roupas de brechó precisam de um carinho a mais, talvez tirando manchas ou consertando algum defeito, mas sempre procurando o potencial das roupas quando eu vou num brechó.
Já segundo a “brechózeira” Edilana Damasceno, de 23 anos, por conhecer bem os brechós, ela sabe que é possível encontrar peças idênticas ou bem parecidas com as vendidas no fast fashion por até quatro vezes menos — e, muitas vezes, com qualidade superior.
— Além disso, quando você compra roupas caras, acaba criando um apego a elas. É uma moda que começa e termina em você. No brechó, eu compro peças que já tinham uma história. E, no geral, não sou tão apegada às minhas roupas. Se algo não serve em mim, já passo para outra pessoa. Eu sempre faço as roupas circularem.
Curadoria especializada
Tanto no Peça Rara quanto no Enjoei, há equipes especializadas na triagem e precificação das peças. Caso um item não atenda aos padrões de qualidade, é devolvido ao fornecedor. O Peça Rara recomenda que os fornecedores doem essas peças ao Instituto Eu Sou Peça Rara, que vende os produtos a valores simbólicos para destinar a causas sociais.
No Enjoei, há também um time dedicado ao desenvolvimento de tecnologias para excluir anúncios suspeitos e bloquear vendedores que não sigam as diretrizes da plataforma. Os consumidores podem denunciar irregularidades dentro do app, e o valor pago por um produto só é liberado ao vendedor sete dias após a confirmação da entrega.
Segundo Ana Luiza, a Geração Z ainda é a principal consumidora do Enjoei, mas a empresa tem observado um crescimento na diversidade de vendedores e compradores, reforçando a consolidação dessa mudança de mentalidade sobre o consumo de segunda mão.
App contra o desperdício também ganha força
Além da moda circular, outra vertente da economia sustentável tem ganhado força: o combate ao desperdício. No Brasil, o IBGE (2024) estima que 46 milhões de toneladas de alimentos sejam jogadas fora anualmente, e startups têm encontrado oportunidades para mitigar esse problema.
O Food to Save, por exemplo, conecta consumidores a estabelecimentos que oferecem produtos próximos do vencimento com descontos. Criado em 2020, o app já reúne quase 10 mil parceiros e 1 milhão de usuários ativos por mês.
Food To Save nasceu com propósito de combater o desperdício de alimentos
Divulgação/Food To Save
Entre a clientela, predomina a classe C, com presença também entre as classes A e B. O CEO e fundador, Lucas Infante, viu de perto o impacto do desperdício ao gerenciar um supermercado e decidiu transformar a resolução desse problema em um modelo de negócios.
— Vivemos em um país de extremo contraste social, onde muitas pessoas ainda passam fome. Estamos resolvendo um problema na ponta. A indústria ainda produz massivamente e o mercado não consome tudo. Além disso, temos muita ineficiência logística e falta uma legislação clara sobre desperdício de alimentos no Brasil.
O maior segmento do app, por enquanto, inclui supermercados, padarias e docerias, setores com altos excedentes alimentares. Outro ponto importante do negócio, segundo Infante, é a possibilidade de comprar produtos mais caros por um preço acessível, democratizando o acesso a itens de maior qualidade.
— Fazemos com que mais pessoas possam comprar, reduzindo a barreira social. O donut que você comprou não vai estar quentinho, como quando acabou de sair do forno, mas continua próprio para consumo. O princípio é reduzir o desperdício.
O pesquisador Gilberto Silva Filho, de 27 anos, é cliente regular da Food To Save. Começou a usar a plataforma em 2023 e semanalmente encomenda sacolas de uma padaria próxima a sua casa no Rio. Para ele, comprar produtos próximos ao vencimento, mas ainda dentro da validade e com boa qualidade, por um preço mais baixo, é “fenomenal”.
— Reduzir o desperdício é uma maneira importante de se tornar mais sustentável. O app também é uma oportunidade de conhecer estabelecimentos novos — conta.
Além das compras recorrentes em padarias, Gilberto também faz pedidos no trabalho, quando quer comer um lanche com os colegas, ou no fim de semana, quando decide cozinhar e está sem ideias. Assim, o que vier na sacola determina o cardápio.
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