‘Eu faço mesmo é comida raiz’: Janaina Torres conta como ganhou o mundo sem sair do centro de São Paulo
Em entrevista a PEGN, a chef fala sobre sua trajetória, o prêmio de melhor chef do mundo e as oportunidades que o setor reserva para empreendedores Nascida e criada no centro de São Paulo, Janaína Torres conquistou o mundo sem precisar sair da mesma vizinhança que abriga suas primeiras memórias de infância. Eleita como melhor chef mulher global pela última edição do ranking The World’s 50 Best Restaurants, ela está à frente de um conjunto de bares e restaurantes que ajudaram a consolidar os arredores do Edifício Copan como um dos mais vibrantes circuitos culturais e gastronômicos da cidade.
Os negócios foram criados em parceria com o ex-marido, Jefferson Rueda, e incluem a lanchonete Hot Pork, a Merenda da Cidade e a Sorveteria do Centro, além dos estrelados Bar da Dona Onça e A Casa do Porco. Juntas, as casas faturaram R$ 100 milhões no ano passado.
Conhecida pela personalidade forte e pela proximidade com a chamada culinária raiz, revelou-se como uma importante porta-voz de movimentos ligados ao acesso à alimentação de qualidade e à valorização do trabalho de produtores locais.
Em entrevista a Pequenas Empresas & Grandes Negócios, ela fala sobre a importância desses princípios na construção de uma das mais bem-sucedidas trajetórias da gastronomia brasileira – e as oportunidades que o setor reserva para empreendedores comprometidos com suas próprias histórias.
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Você foi recentemente eleita como a melhor chef mulher do mundo pelo ranking do The World’s 50 Best Restaurants, um dos mais conceituados do mercado de gastronomia. Como recebeu essa notícia?
A ficha demorou a cair. Ainda não caiu, né? A primeira reação foi pensar: por que eu ganhei? Não tinha exatamente a intenção de me colocar como uma grande chef para o mercado. Achava que talvez os jurados não acreditassem nas técnicas mais ancestrais com que eu trabalho. Pessoalmente, sempre acreditei nessa linha mais primitiva, mas não achava que seria reconhecida por isso. Então, foi muito bom para reforçar a certeza de que estou no caminho certo, que o Brasil está no caminho certo e que temos muita coisa para mostrar. As pessoas são apaixonadas pela feijoada, pela caipirinha, pela moqueca, pelo churrasco, pela farofa. O Brasil ganhou com isso. Não tomei esse prêmio apenas para mim. Acredito que muita gente se sentiu representada.
Esse reconhecimento é resultado de uma trajetória de muitos anos, certo? Onde começa essa história?
Tive o primeiro contato com a cozinha por meio do trabalho da minha mãe. Ela era relações-públicas de casas noturnas famosas nos anos 1980, como o Gallery e o Hippopotamus. Vários chefs e pessoas dessa cena visitavam a minha casa e ficavam cozinhando por ali. Eu era muito pequena, tinha 5 ou 6 anos, e ficava olhando tudo aquilo muito encantada. A gente sempre morou no centro. Frequentava muito o restaurante do seu Giovanni Bruno [icônico maître e restaurateur de São Paulo] e ficava atendendo o telefone… Assim fui me apaixonando pela cozinha e pelo mundo da gastronomia.
Como essa paixão foi se transformando em um caminho profissional?
Sempre precisei trabalhar muito. Vim de uma família pobre. Minha mãe trabalhava em lugares badalados. Mas o salário não era alto, né? Era bem difícil para ela. Desde jovem queria mudar essa história. Então passei a vender sanduíche natural e coxinha na rua. Também fazia iogurte batido com fruta. Quando tinha 16 anos, passei a namorar um rapaz de uma família que tinha uma barraca de comida na Praça da República [centro de São Paulo]. Comecei a ajudá-los preparando pratos brasileiros, como cuscuz e vatapá, com receitas garimpadas nos livros dos sebos da região. Foi mais ou menos nessa época que também me apaixonei pelo ramo de bebidas. Fiz todos os cursos que podia para me especializar na área. Algum tempo depois, me tornei a sommelière oficial da Pernod Ricard no Brasil. Foi lá que comecei a ter mais contato com chefs e cozinheiros.
Quando surgiu a primeira ideia de negócio?
Queria ter um lugar onde eu pudesse servir essa comida brasileira que eu fazia desde sempre. Mesmo trabalhando com vinhos, comecei a cozinhar em alguns eventos para grupos de executivos japoneses. Preparava pratos típicos. Já tinha um plano de abrir um bar que servisse comida feita na panela de pressão. Foi nesse mesmo período que eu conheci o Jefferson [Rueda, ex-marido e sócio]. Inauguramos o Bar da Dona Onça, em 2008, no Edifício Copan, no centro de São Paulo. Desde o início, a ideia era oferecer os pratos clássicos que eu comia nos restaurantes da cidade e no meu dia a dia. Em cinco meses, ganhei o prêmio de melhor cozinha de bar da revista Veja São Paulo. Acho que as pessoas estavam muito carentes dessa proposta mais familiar. Com o crescimento do negócio, passei a experimentar novas técnicas e receitas. Mas os clientes sempre pediam para eu manter o foco na comida mais afetiva. Isso foi muito bom para eu manter o pé no chão e não me vender a essa cozinha técnico-emocional que entrou na moda. Eu faço mesmo é comida raiz.
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FOCO NO PRESENTE – “Não gosto de pensar muito nem no passado nem no futuro”, diz Janaína Torres, que vê, hoje, muitas oportunidades para negócios de alimentação, principalmente no setor de fast-food
Marcus Steinmeyer/Divulgação
Além da comida, a que você atribui o sucesso inicial do Bar da Dona Onça? Tinha alguma estratégia específica para conquistar o público?
A gente meio que vai sendo levado pela vida. No meu caso, eu tive o privilégio de atuar em um lugar no qual passei toda a minha vida. O centro de São Paulo estava meio esquecido quando abri o Bar da Dona Onça. Muitas pessoas falam que eu ajudei a revitalizar a região. Na verdade, eu preservei e resgatei o que já existia. A grande elite havia ido embora do centro, mas o movimento nunca deixou de existir. Muitas pessoas que trabalhavam e moravam ali precisavam pegar o carro para comer em restaurantes de outros bairros. Então, o que aconteceu? Eu trouxe uma cozinha de qualidade, a um preço acessível, em um ambiente mais descontraído, onde todos podiam se sentir à vontade. Acho que, no final das contas, eu contei uma história que diz respeito ao que realmente faço e sou. E as pessoas gostam de ouvir a verdade, mesmo que essa verdade não seja ideal para a vida delas.
Todas as suas casas estão localizadas no centro de São Paulo e têm uma forte identificação com a região. Nunca pensou em expandir para outros locais?
Pessoalmente, sempre vou buscar maneiras de estar aqui. Mas tenho outros sócios. Não sei exatamente o que eles pensam sobre isso. Tenho certeza de que o Bar da Dona Onça não vai sair daqui. Nas outras casas, isso pode terminar saindo da minha alçada, pois sou minoritária. Se eles decidirem, está decidido. Mas não vejo muito essa ideia sendo discutida no momento. Dito isso, acredito que projetos de expansão podem se encaixar muito bem em alguns dos nossos negócios. Não acho que seria ruim expandir.
Você possui atualmente cinco negócios em operação: Bar da Dona Onça, A Casa do Porco, Hot Pork, Sorveteria do Centro e Merenda da Cidade. Como encontra tempo para se dividir entre todos eles?
Tenho equipes brilhantes. Busco trabalhar com gente que realmente acredita naquilo que estamos fazendo. No meu caso específico, tenho bastante confiança de que quem trabalha nos meus negócios sabe que também está trabalhando para cuidar do centro de São Paulo. É por isso que eu não quero sair daqui. Acho que todo mundo que está comigo tem essa paixão em comum pela região.
A sua imagem está bastante ligada aos negócios, principalmente depois dessa última premiação. Até que ponto isso pode ser um problema ou uma vantagem?
Aqui eu vou discordar de você. Meu Instagram, por exemplo, tem muito menos seguidores do que o dos restaurantes. Acho que a minha imagem ajuda quando eu ganho um prêmio como esse. Eu saio na imprensa, o público comenta e vibra junto, pois é um prêmio do Brasil. Mas não acredito que as pessoas vão ao Dona Onça ou à Casa do Porco esperando me encontrar por ali. Elas vão porque as casas se tornaram patrimônios da cidade. Eu tomo muito cuidado com isso. Adoro gente, estou nas redes sociais e gosto de me comunicar. Mas jamais vou querer me sobressair em um trabalho que é realizado por todos. Eu não trabalho sozinha. Tenho equipes que estão brilhando todos os dias para que os negócios andem sozinhos. Se eu sair amanhã, os negócios continuam. As casas são muito sólidas e não precisam mais da minha imagem para funcionar. São negócios independentes, cada um com o seu próprio conceito.
O mercado de alimentação passou por diversas mudanças ao longo dos últimos anos, sobretudo no pós-pandemia. Como avalia essas transformações e o que tem feito para acompanhá-las?
Prefiro trabalhar no presente. Não gosto de pensar muito nem no passado nem no futuro. É sempre o dia de hoje. E nesse presente eu vejo muitas oportunidades para os negócios de alimentação. O mercado ainda está muito atrasado, mundialmente falando. Nosso conceito de fast-food, por exemplo, ainda é baseado em comida de péssima qualidade. Isso abre um mercado gigantesco a ser desbravado. Se os empresários cozinheiros entrarem para o setor de fast-food, a vida das pessoas vai melhorar bastante. Basta entrar em qualquer praça de alimentação para ver do que estou falando. Estamos falando de comidas caras e muito ruins. A gente nem começou a trabalhar esse problema. Essa é apenas uma das inúmeras possibilidades que existem na gastronomia. Tem espaço para mais de cem anos de crescimento.
Você acha que é possível criar negócios de alimentação que combinem esses critérios de qualidade com potencial de escala?
Vamos falar da Casa do Porco. Um restaurante que está na lista dos melhores do mundo e chegou a atender 14 mil pessoas por mês com um menu de R$ 200. Quando você observa outros restaurantes dessa lista, quase nenhum tem um menu que custa menos de R$ 1 mil por pessoa, incluindo bebida e tudo mais. Isso mostra que é superpossível fazer comida boa e acessível. Mas é preciso trabalhar três vezes mais para atingir o volume necessário sem perder a qualidade. Treinar quem vai trabalhar nesse nível demanda um esforço educacional enorme. Então, muitas pessoas acabam comprando uma franquia na qual já vem tudo pronto e pasteurizado. Elas sabem que vão receber a operação pronta e que irão faturar uma determinada quantia no final do mês. Mas, se você tentar criar um conceito seu, com uma comida de qualidade, talvez consiga ter uma marca muito melhor – e ganhar muito mais com isso. A maioria das pessoas, no entanto, prefere não se arriscar e ir atrás do óbvio. É por isso que a gente fica ali com o mesmo de sempre, com aquela comida pasteurizada, ruim, e pagando caro por isso. A classe média é a maior vítima dessa indústria.
MACHISMO – “Quando me separei, algumas pessoas me falaram que eu não daria conta dos negócios, mesmo já trabalhando há décadas nesse mercado. Isso foi brutal para mim”, afirma Janaína Torres
Marcus Steinmeyer/Divulgação
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Os relatos de machismo no mercado de gastronomia são bastante frequentes. Como lidou com isso ao longo da sua carreira? Acha que essa realidade está mudando?
Eu lido com isso todos os dias. Mas tenho uma certa esperança em relação ao futuro. Percebo que, quanto mais jovem é o homem, menos machista ele tende a ser. Enquanto isso, a gente vai se deparando com a realidade que existe hoje. Na cozinha, se o homem chora, ele é visto como vítima. Se isso acontece com a mulher, ela é acusada de se vitimizar. Pessoalmente, posso dizer que não sofri muito. Mas isso apenas porque acabei trabalhando para mim mesma. Sempre fui a chef. Mas senti o peso do machismo com muita força quando me separei. Perdi o escudo que tinha e acabei me deparando com um mundo obscuro. Algumas pessoas me falaram que eu não daria conta dos negócios, mesmo já trabalhando há décadas nesse mercado. Isso foi brutal para mim.
O Jefferson Rueda, seu ex-marido, é sócio nas casas. Qual foi o impacto que o divórcio teve nos negócios?
Isso é a parte boa de criar negócios para o mundo, e não para si. Como falei, as coisas não dependem exclusivamente da gente. Mas a realidade é a seguinte: eu já estava à frente da cozinha fazia algum tempo. Ele havia se afastado um pouco. Então, não houve um problema específico nesse sentido. Como hoje estou vivendo esse momento de visibilidade, o Jefferson pediu para que eu me distanciasse da Casa do Porco para que ele pudesse atuar mais no restaurante. Combinamos que sigo como chef até o final de 2024. A partir de 2025, passo a focar completamente no À Brasileira, meu novo negócio. Continuarei como embaixadora da Casa do Porco, mas vamos nos dividir mais, para cada um poder ocupar o seu espaço. Eu acho interessante que ele volte. É bom para todos nós.
Poderia contar um pouco mais sobre À Brasileira?
A ideia é criar um espaço que ofereça comida de diferentes regiões do país em uma cozinha mais moderna. Tudo feito com ingredientes de muita excelência, com os melhores produtores que eu conseguir achar no Brasil. O local vai abrigar um restaurante autoral e um mercado de comida brasileira. Tudo isso em uma proposta democrática e acessível. Quero usar minha criatividade para explorar técnicas de cozinha genuína a partir de uma abordagem mais moderna. Já estou promovendo jantares e almoços em ocupações itinerantes a partir desse conceito [o estabelecimento físico ainda não tem previsão oficial de inauguração].
Parece que todos os projetos de que você já participou alcançaram um bom nível de sucesso. Tem alguma história de fracasso para contar?
Ah, tomara que não. Bate na madeira [risos]. Não quero ter esse fracasso para contar.
E o que você diria para outras pessoas que estão pensando em empreender no ramo e desejam ter esse mesmo sucesso?
Bom, existem duas respostas para essa pergunta. Se for para um grande investidor, o conselho que eu dou é que ele acredite no mercado de fast-food por meio de grandes cozinheiras. O conselho para quem não tem esse dinheiro e que está começando é apostar em algo que tenha a sua identidade e que conte a sua verdade. Antes de descobrir o que fazer, é preciso entender por que você está pensando em abrir um negócio.